sábado, 27 de outubro de 2012

Prólogo da Trilogia U.S.A. de John Dos Passos, Escrito e Anexado (Posteriormente) Pelo Próprio

'A Short Story of America' (1979), R. Crumb


USA
O jovem anda rápido, sozinho, em meio à multidão que se rarefaz nas ruas noturnas; pés cansados de caminhar horas; olhos ávidos pela curva cálida de um rosto, lampejos de olhos que correspondam, a posição de uma cabeça, um erguer de ombro, a maneira como as mãos se abrem e fecham; o sangue fervilha de desejo; a mente é uma colmeia de esperanças zumbindo e ferroando; músculos doem do trabalho, o trabalho com a picareta e a pá do consertador de estradas, a perícia do pescador com o gancho quando recolhe a escorregadia rede da amurada da traineira adernada, o movimento do braço do homem na ponte ao jogar o rebite em brasa, a mão do maquinista experiente no afogador, o uso que o agricultor faz de todo o seu corpo quando, tocando as mulas, desengancha o arado do sulco. O jovem caminha sozinho, varrendo a multidão com olhos ávidos, ouvidos ávidos e tensos para escutar, sozinho, só.

   As ruas estão vazias. As pessoas se amontoaram nos metrôs, tomaram bondes e ônibus; nas estações, debandaram em busca dos trens suburbanos; infiltraram-se em pensões e quartinhos, subiram em elevadores nos prédios de apartamentos. Numa vitrina dois vitrinistas pálidos, em mangas de camisa, trazem um manequim mulher num vestido de noite vermelho, numa esquina soldadores com máscaras curvam-se sobre finas lâminas de chama azul consertando um trilho de bonde, alguns vagabundos bêbados passam cambaleando, uma triste prostituta inquieta-se debaixo da luz de um poste. Do rio sobe o profundo e estrepitoso apito de um vapor que deixa o cais. Um rebocador apita na distância.

   O jovem anda sozinho, rápido mas não o bastante, longe mas não o bastante (rostos passam e desaparecem, conversas tornam-se farrapos, passadas perdem-se nos becos); ele precisa tomar o último metrô, o bonde, o ônibus, subir correndo as pranchas de embarque de todos os vapores, registrar-se em todos os hotéis, trabalhar nas cidades, atender aos anúncios de empregos, morar em todas as pensões, dormir em todas as camas. Uma cama só não basta, um emprego só não basta, uma vida só não basta. À noite, a cabeça rodando de desejos, ele caminha sozinho, só.

   Sem emprego, sem mulher, sem casa, sem cidade.

   Só os ouvidos, à espera de uma fala, não estão sós; tensos, apanhados pelos tentáculos das palavras em frases, a conclusão de uma piada, o desvanecer cantado de uma história, a áspera queda de uma sentença; os tentáculos entrelaçados da fala desdobram-se pelos quarteirões da cidade, espalham-se pelas calçadas, brotam ao longo das avenidas amplas e arborizadas, passam chispando com os caminhões que partem em suas longas jornadas noturnas por rodovias ruidosas, sussurram descendo arenosas estradas laterais, passam por fazendas arruinadas, juntam cidades e postos de gasolina, rotundas de locomotivas, vapores, aviões que tateiam os caminhos do céu; palavras gritadas em pastos montanheses derivam lentamente descendo rios que se abrem para o mar e as praias silenciosas.

   Não era nas longas caminhadas em meio às multidões apressadas à noite que ele se sentia menos só, nem no campo de treinamento em Allentown, nem durante o dia nas docas de Seattle, nem no vazio mau cheiro das quentes noites de verão da infância na cidade de Washington, nem na comida da rua da Feira, nem ao nadar saltando dos vermelhos rochedos de San Diego, nem na cama  cheia de pulgas em Nova Orleans, nem no frio vento cortante que vinha do lago, nem nos rostos cinzentos que tremiam ao ranger das marchas dos carros na rua sob a avenida Michigan, nem nas  chaminés fumarentas dos trens expressos, nem atravessando o país, nem subindo a cavalo os secos canyons das montanhas, nem na noite sem saco de dormir entre geladas trilhas de ursos no Yellowstone, nem andando de canoa aos domingos no Quinnipiac;

   mas nas palavras de sua mãe falando-lhe de muito tempo atrás, em seu pai falando de quando eu era menino, nas divertidas histórias dos tios, nas mentiras que os garotos contavam na escola, nas patranhas dos empregados, nas histórias cabeludas que os soldados de infantaria contavam após o toque de silêncio;

   era o falar que ficava nos ouvidos, o elo que mexia com o sangue; USA.

   Os USA são a fatia de um continente. Os USA são um grupo de companhias holding, alguns aglomerados de sindicatos, um volume de leis encadernado em couro de bezerro, uma rede de rádio, uma cadeia de cinemas, uma coluna de cotações da bolsa apagada e escrita por um rapaz da Western Union num quadro negro, uma biblioteca pública cheia de jornais velhos e livros de história com os cantos das páginas dobrados e protestos garatujados nas margens a lápis. Os USA são o maior vale fluvial do mundo, bordejado de montanhas e colinas. Os USA são um conjunto de funcionários falastrões com contas bancárias demais. Os USA são um bando de homens enterrados de uniforme no cemitério de Arlington. USA são as letras no fim do endereço quando se está longe de casa. Mas acima de tudo os USA são o falar do povo.  


'Paralelo 42,' págs. 11, 12, 13 e 14 - John Dos Passos
Traduzido por Marcos Santarrita; Ed. Benvirá

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