quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

Ela não era daqui…

Cioran
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Encontrei-a apenas duas vezes. É pouco. Mas o extraordinário não se mede em termos de tempo. Fui imediatamente conquistado pelo seu ar de ausência e de desorientação, pelos seus sussurros (ela não falava), seus olhares que não se fixavam nas pessoas nem nas coisas, sua aparência de espectro adorável. “Quem você é? De onde vem”, era a pergunta que se tinha vontade de fazer a ela à queima-roupa. Não teria conseguido respondê-la, de tanto que se confundia com o seu mistério ou se recusava a traí-lo. Ninguém nunca saberá como fazia para respirar, por qual aberração cedia aos prestígios da respiração, nem o que procurava entre nós. O que é certo é que não era daqui e que só compartilhava de nossa degradação por gentileza ou por alguma curiosidade mórbida. Só os anjos e os incuráveis podem inspirar um sentimento análogo ao que sentíamos em sua presença. Fascinação, inquietação sobrenatural.         

No mesmo instante em que a vi me apaixonei pela sua timidez, uma timidez única, inesquecível, que lhe dava a aparência de uma vestal esgotada a serviço de um deus clandestino ou então de uma mística devastada pela nostalgia ou pelo excesso de êxtase, para sempre incapaz de reintegrar as evidências!       

Cheia de bens, satisfeita conforme o mundo, parecia entretanto destituída de tudo, no limite de uma mendicidade ideal, condenada a murmurar sua miséria no seio do imperceptível. De resto, o que podia possuir e proferir, quando o silêncio lhe servia de alma e a perplexidade de universo? E não lembrava aquelas criaturas da luz lunar de que fala Rozanov? Quanto mais se pensava nela, menos se era inclinado a julgá-la segundo as preferências e pontos de vista do tempo. Um gênero inatual de maldição pesava sobre ela. Felizmente, mesmo seu encanto se inscrevia no passado. Deveria ter nascido em outro lugar e em outra época, no meio das charnecas de Haworth, na neblina e na desolação, ao lado das irmãs Brontë...                
Quem sabe decifrar os rostos lia facilmente no seu que não estava condenada a durar, que o pesadelo dos anos lhe seria poupado. Viva, parecia tão pouco cúmplice da vida, que não podíamos olhá-la sem pensar que jamais tornaríamos a vê-la. O adeus era o sinal e a lei de sua natureza, o brilho de sua predestinação, a marca de sua passagem sobre a terra. Por isso, portava-o como uma auréola, não por indiscrição, mas por solidariedade com o invisível.
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Exercícios de Admiração,’ págs. 149, 150, ed. Rocco; trad. por José Thomaz Brum; 1947