sábado, 8 de setembro de 2012

Encarnações de Crianças Queimadas

The Tree of Life (2011), Dir.: Terrence Malick


David Foster Wallace
(1962 — 2008)   


O Papai estava ao redor do lado da casa pendurando a porta para o inquilino quando ele ouviu os gritos da criança e a voz da Mamãe se elevando entre eles. Ele pôde se mover rápido, e a varanda dos fundos dava direto na cozinha, e antes que a tela da porta tivesse batido fechada atrás dele o Papai tinha pegado a cena completa, a panela virada no azulejo do chão antes do fogão e o jato azul da boca e o chão uma piscina de água ainda fumegando como muitos braços estendidos, o garotinho em sua fralda folgada em pé rígido com o vapor saindo dos seus cabelos e seu peito e ombros escarlates e os olhos dele rolando para cima e a boca aberta de forma muito selvagem e parecendo de algum modo separada dos sons que emitia, a Mamãe agachada sobre um joelho com o pano de prato alisando-o inutilmente e alcançando os gritos com o choro dela própria, tão histérica que estava quase congelada. O joelho dela e o pequeno e suave pé descoberto continuavam na piscina fumegante, e o primeiro ato do Papai foi pegar a criança de baixo dos braços e levantá-la para longe dali e levá-la para a pia, da qual ele atirou os pratos para fora e atingiu a torneira para deixar a gelada água de poço escorrer sobre o pé do menino enquanto com sua mão em concha ele acumulava e derramava ou arremessava mais água gelada sobre a cabeça e os ombros e o peito dele, querendo em primeiro lugar ver o vapor parar de sair dele, a Mamãe sobre seus ombros invocando Deus até ele mandar ela atrás de toalhas e gaze se eles tivessem, o Papai se movendo rapidamente e bem e sua mente de homem esvaziada de tudo que não fosse propósito, não consciente ainda de quão suavemente ele se movia ou de que ele tinha cessado de ouvir os gritos mais altos porque ouvi-los iria paralisá-lo e tornar impossível o que tinha que ser feito para ajudar sua criança, cujos gritos eram regulares como respiração e seguiam por tanto tempo que eles já tinham se tornado uma coisa na cozinha, outra coisa para se mover rapidamente ao redor. A porta lateral do inquilino lá fora estava pendurada por metade de sua dobradiça superior e se moveu levemente ao vento, e um pássaro no carvalho do outro lado da entrada da garagem aparentava observar a porta com a cabeça erguida enquanto os choros continuavam vindo lá de dentro. Os piores escaldos pareciam ser no braço e no ombro direitos, o vermelho do peito e estômago estava ficando rosa de baixo da água gelada e as solas suaves dos pés dele não estavam empoladas pelo que o Papai pôde ver, mas o garotinho continuava apertando os punhos pequenos e gritando exceto que agora meramente por reflexo do medo o Papai iria saber que ele pensou possivelmente depois, o pequeno rosto distendido e as veias filiformes saltando sobre as têmporas e o Papai repetindo que ele estava aqui ele estava aqui, adrenalina vazando e uma raiva da Mamãe por permitir que essa coisa acontecesse apenas começando a se reunir em feixes na extrema traseira de sua mente ainda a horas antes da expressão. Quando a Mamãe retornou ele não tinha certeza se devia enrolar a criança em uma toalha ou não mas ele molhou a toalha por baixo e fez, envolveu-o firme e levantou seu bebê da pia e o colocou na borda da mesa da cozinha para acalmá-lo enquanto a Mamãe tentava checar as solas dos pés com uma mão acenando ao redor da área da boca dela e proferindo palavras sem sentido enquanto o Papai se dobrava por dentro e estava cara a cara com a criança na borda xadrez da mesa repetindo o fato de que ele estava aqui e tentando acalmar os choros do garotinho mas continuavam esbaforidamente os gritos da criança, um alto e puro som cintilante que poderia parar o seu coração e os beicinhos e gengivas dele agora estavam tingidos com o azul claro de uma chama baixa o Papai pensou, gritando quase como se ainda estivesse de baixo da panela virada sofrendo. Um, dois minutos assim que parecem muito mais longos, com a Mamãe ao lado do Papai falando cantando perto do rosto da criança e a cotovia no galho com a cabeça para o lado e a dobradiça ficando branca em uma linha com o peso da porta enviesada até que o primeiro feixe de vapor veio preguiçoso de de baixo da bainha da toalha enrolada e os olhos dos pais se encontraram e arregalaram — a fralda, que quando eles abriram a toalha e encostaram as costas do pequeno garoto deles no pano xadrez e desprenderam as presilhas suavizadas e tentaram removê-la resistiu levemente com novos gritos altos e estava quente, a fralda do bebê deles queimou suas mãos e eles viram onde a água de verdade tinha caído e encharcado e estava queimando o bebê deles todo esse tempo enquanto ele gritava para que eles o ajudassem e eles não o fizeram, não fizeram contudo e quando eles tiraram-na e viram o estado do que estava ali a Mamãe disse o primeiro nome do Deus deles e se agarrou na mesa para conseguir se manter de pé enquanto o pai se virou e deu um soco no ar da cozinha e amaldiçoou tanto si próprio quanto o mundo não pela última vez enquanto sua criança poderia agora estar dormindo se não fosse pelo ritmo da sua respiração e os minúsculos movimentos desferidos por suas mãos no ar abaixo de onde ele estava estendido, mãos do tamanho do dedão de um homem crescido que tinham agarrado o dedão do Papai no berço enquanto ele tinha observado a boca do Papai se movendo em uma canção, a cabeça dele inclinada e parecendo ver bem através dele indo dentro de algo que os seus olhos fizeram o Papai se sentir solitário em uma maneira estranha e vaga. Se você nunca tiver chorado e quiser, tenha uma criança. Quebra o seu coração por dentro e alguma coisa vai uma criança é uma canção anasalada que o Papai ouve de novo como se a senhora estivesse quase ali com ele olhando para baixo para o que eles tinham feito, embora horas depois o que o Papai não iria se perdoar mesmo era o quão doentiamente ele queria um cigarro bem ali enquanto eles envolveram a criança o melhor que eles puderam em gaze e duas toalhas de mão cruzadas e o Papai o levantou como um recém-nascido com o crânio dele em uma das palmas e correu com ele para a caminhonete aquecida e queimou pneu por todo o caminho até a cidade e a sala de emergências da clínica com a porta do inquilino pendurada aberta daquele jeito o dia inteiro até que a dobradiça rompeu mas a essa altura já era tarde demais, quando não iria parar e eles não puderam fazer nada a criança tinha aprendido a sair de si própria e observar todo o resto se desdobrar de um ponto acima, e seja o que for que se perdeu daí em diante nunca mais importou, e o corpo da criança se expandiu e caminhou sobre e recebeu o pagamento e viveu sua vida desabitado, uma coisa entre coisas, com a alma de seu eu com tanto vapor em cima, caindo como chuva e depois ascendendo, o sol subindo e descendo como um ioiô.


David Foster Wallace
Incarnations of Burned Children
, Oblivion: Stories

Traduzido por J.V.

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